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Artigos. 22 . ago . 2024

Litigância predatória e o acesso à Justiça

Áreas relacionadas: Contencioso, arbitragem e mediação

Está no inconsciente coletivo o sentimento de que a Justiça no Brasil é cara e lenta. Em janeiro deste ano, diversas agências de notícias repercutiram relatório do Tesouro Nacional de que o custo do Judiciário brasileiro em 2022 foi equivalente a 1,6% do PIB, o maior de uma lista de 53 países.

Em fevereiro, a Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados (OAB-RJ) lançou campanha "A Justiça custa um absurdo", pedindo ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a revisão dos valores das custas judiciais cobrados no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ)

É preciso identificar as causas para atacar de forma eficiente o problema. O "Justiça em Números", excelente base de dados disponibilizada pelo CNJ, indica que, até abril deste ano, existiam impressionantes 84 milhões de processos pendentes em todo o Judiciário. A mesma base do CNJ mostra que, desde 2020, foram arquivados 136 milhões de processos, igualmente impressionante. 

O Judiciário brasileiro, muito provavelmente, é um dos mais produtivos do mundo. Mas, ainda assim, continua-se com quantidade quase proibitiva de processos. Por quê? No mesmo período de 2020 até abril deste ano, foram registrados 137 milhões de processos novos. Ou seja, o Judiciário julga como nunca, mas a quantidade de processos continua a aumentar. Difícil achar exemplo melhor de enxugar gelo ou do Judiciário fazendo as vezes de Sísifo empurrando uma rocha, perenemente, numa montanha...

Diversas leis, notadamente o Código de Defesa do Consumidor em 1990 e a Lei de Juizados Especiais Cíveis em 1995, promoveram significativo acesso à Justiça à maior parte da população, garantindo mecanismos para a rápida prestação dos serviços judiciais, quase sempre gratuitos. 

O outro lado da balança, contudo, é que a massificação da Justiça torna os serviços judiciais mais lentos e caros, porque toda prestação judicial, mesmo "gratuita", tem o custo absorvido por todos. 

Nos últimos 4 anos, registrou-se média anual de 31 milhões de processos novos, o que traz à luz o problema da litigância predatória. São casos de ações ajuizadas em massa, com argumentações genéricas e sem documentos comprobatórios, muitas vezes assinadas pelo mesmo advogado. Em vários casos, as ações são ajuizadas em nome de pessoas idosas, pobres ou com pouca instrução, que sequer sabem da existência da ação.

Recentemente, foi noticiado que um juiz de Uberaba extinguiu quase mil ações, de uma só vez, após relatos de que o advogado teria visitado residências de beneficiários do INSS para obter dados de pessoas idosas e ajuizar ações genéricas em seus nomes contra instituições bancárias.

Há casos, ainda, gravíssimos de fraudes documentais, como a adulteração de provas e ajuizamento de ações em nome de pessoas falecidas, que impõe a apuração das responsabilidades desses advogados em processos ético-disciplinares junto à OAB, além das indenizações cabíveis no Judiciário. 

Não é difícil achar na internet empresas que se dizem especializadas em comprar o direito de ajuizar ações contra outras empresas, sempre relacionadas a pretensões genéricas, como atrasos de voos, tentativa frustrada de contratação de crédito consignado e outros pedidos que justificariam o banalizado "dano moral". 

No ano de 2021, foi proferida sentença em ação movida pela OAB-RJ, condenando empresa startup por captação indevida de clientela ao fazer chamadas públicas pela Internet prometendo "solucionar problemas" de passageiros de companhias aéreas.

Essas demandas ilegítimas sobrecarregam o Poder Judiciário, ainda com o agravante de invariavelmente serem propostas com pedidos de gratuidade de justiça. Faz sentido uma empresa, cuja atividade é comprar ações de outros, ter o benefício da gratuidade de justiça? É evidente que não. Quem paga a conta? Aqueles que precisam realmente acionar o Poder Judiciário com demandas legítimas.

A questão não é de fácil solução, pois envolve o princípio constitucional do direito de acesso à Justiça, uma das bases do Estado democrático de Direito. Não se pode impedir alguém com interesse legítimo de acessar o Poder Judiciário. Por outro lado, não há muitas dúvidas de que a judicialização abusiva e ilegítima gera enormes prejuízos, assoberbando o Poder Judiciário e fazendo com que demandas legítimas não possam ser julgadas de forma rápida e eficiente.  

No ano de 2023, o Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) estimou que a litigância predatória custa ao Poder Judiciário paulista cerca de R$ 2,7 bilhões por ano.

Os custos para as empresas acionadas também são altíssimos. No ano de 2020, diretores da Anac afirmaram que o custo da judicialização no setor aéreo era de R$ 1 bilhão ao ano.

Pode-se imaginar que os advogados seriam beneficiados por esse cenário, mas essa crença não é verdadeira. A banalização dos litígios também afeta negativamente a classe dos advogados. Empresas assoladas por milhões de processos massificados não remuneram adequadamente os advogados responsáveis por cuidar destes processos. Em estudo demográfico encomendado pelo Conselho Federal da OAB à Fundação Getulio Vargas, verificou-se que mais de um terço dos advogados brasileiros tem rendimento individual mensal de até dois salários-mínimos. 

O CNJ corretamente identificou esse desafio e tem adotado medidas para estimular a busca por soluções. Em 2020, editou a Resolução 349 criando o Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ), cujo objetivo é identificar e propor tratamento adequado de demandas repetitivas ou de massa no Judiciário brasileiro. No ano de 2022, o CNJ editou a Recomendação 127, destinada a recomendar aos tribunais a adoção de cautelas visando a coibir a judicialização predatória. 

Em 2023, estabeleceu-se a Diretriz Estratégica 2023, instando as Corregedorias dos Tribunais a regulamentar e promover protocolos para o combate à litigância predatória, enviando as informações à Corregedoria Nacional para criação de um painel único sobre o tema. Mais recentemente, em julho deste ano, o CNJ abriu inscrições para contratar instituição visando o desenvolvimento do Diagnóstico sobre o Enfrentamento de Litigância Predatória no Judiciário.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também tem atuado no tema. Em fevereiro deste ano, a Corte Especial do STJ iniciou o julgamento do Tema 1198, que trata das possíveis medidas que o juiz pode adotar vislumbrando a ocorrência de litigância predatória. Na ocasião, o julgamento foi interrompido por pedido de vista, após voto do ministro relator estabelecendo a possibilidade de o juiz exigir documentação mínima se suspeitar de litigância predatória.

Os dados deixam claro se tratar de problema que afeta igualmente Judiciário, partes e advogados, demandando a atenção de todos: Judiciário, em todas as suas instâncias (CNJ, Tribunais Superiores, Corregedorias de Justiça e julgadores que se deparam diariamente com tais demandas); Ministério Público, na proteção de vulneráveis vítimas de aproveitadores e nos casos de litigância predatória criminosa; e OAB, mediante a responsabilização ético-disciplinar daqueles advogados que cometem abusos.

A defesa do direito fundamental de acesso à Justiça exige a atuação, evitando que a litigância abusiva continue a comprometer a prestação de justiça rápida, célere e eficiente, para quem efetivamente precisa do Judiciário.

Fonte: JOTA.

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